Sobre os recreios de cimento
Recordam-se dos recreios de cimento?
Em setembro abracei um projeto maravilhoso - dar outra cor aos recreios da escola e promover o brincar para crianças do 1º ciclo numa escola pública. Entusiasmada como uma criança no seu primeiro dia de escola, lá fui.
A ideia inicial era promover competências sócio-emocionais com crianças nos recreios. Parecia simples, havia (e há) um plano muito bem desenhado e planeado e teoricamente tudo apontava para o sucesso.
Comecei por seguir o plano, a estrutura, o que era esperado. Quanto mais tentava implementar o suposto, mais frustada e emocionalmente desgastada ficava e a sensação de fracasso era mais que obvia. Ir para a escola era um suplício e ansiava por me ir embora. Estava a ser uma má experiência para mim como para eles. O plano simplesmente não estava a funcionar. Tudo era o caos, nada era concretizado e sentia-me perdida e “engolida” por crianças de 7, 8 e 9 anos.
Falei com a responsável do programa que muito prontamente me disse que estava tudo bem, que ia com o tempo, que bastava eles fazerem alguma das coisas que já era sinal de um bom caminho mas, eu não sentia nada disso. Provavelmente por estar a implementar uma coisa não pensada por mim e outra parte por saber que um plano não dá para generalizar para todas as crianças. Nós podemos fazer, duas ou três concretizam a atividade, tiramos umas fotografias e "violá", tudo parece estar bem. A chatice é que isto não é suficiente para mim.
Quando o desespero era gigante, experimentava atividades como as que promovo na floresta. Ia carregada com pinhas, paus, “nature puuzles” e mais umas coisas e tudo parecia funcionar um pouco melhor. Depois tentava de novo o programa inicial e voltava a ficar desesperada. Cheguei quase a ser agredida em sala de aula, fui insultada diversas vezes e viver isto com crianças pequenas é muito assustador.
Um dia tive um ataque de ansiedade ou de pânico ao telefone com a coordenadora do programa. Desatei a chorar. Disse “desculpa, mas para mim não dá”, “não consigo” e “vou desistir”. Há coisas que para mim não fazem sentido, não estou a conseguir fazer. Ela perguntou-me, “o que é que precisas?”, respondi “não sei…” e não sabia mesmo. Acabei por dizer que queria brincar com eles, deixá-los brincar, falar e observar, “sim, é isto que eu quero fazer”. Ela respondeu então experimenta. Senti-me alivia mas ainda com a sensação de dever não cumprido. Nesse mesmo dia, a nossa responsável liga-me a perguntar se estava tudo bem. Disse que não, que já tinha falado com a responsável mas que precisava de mais alguma coisa. Depois de uma conversa longa e sincera, decidimos que seguir o meu instinto era o melhor. “Faz o melhor para ti e para os miúdos, tu é que estás lá, tu é que sabes”. Caramba, que alivio! Um alívio a sério. Mas e agora?
Importante sublinhar que nada do que vos vou continuar a contar, aconteceu apenas porque sou doida e teimosa. A equipa com quem trabalho, têm sido impecáveis, cooperantes e solidários comigo. Todos eles me deram o apoio que procurava, todos eles são incansáveis.
Voltei a escola e comecei do zero. A primeira tarefa foi uma conversa franca, directa e honesta com os pequenos. Conversámos sobre a escola, o que eles gostam, não gostam, que gostavam que acontecesse, a casa, a família, os amigos e muito mais. Descobri crianças sozinhas em casa até tarde, pais violentos entre eles verbalmente, crianças que conhecessem os efeitos de substâncias tóxicas nos seus familiares, crianças que jogam até demasiado tarde e que pouco dormem, falta de comida, que acham que a escola é uma seca e uma prisão, pouco colo e mimo e a lista continua.
O meu coração ficou partido. Só me apetecia abraça-los.
Uma das minhas descobertas foi que jogar à bola é o que os faz feliz, pelo menos para a maioria deles. Então, arranjei uma bola de futebol. Agarrei em tudo o que promovia o programa, tirei o “sumo” e comecei a minha nova aventura. Não percebo nada de futebol, mas arranjei umas regras muito especiais para o jogo.
O que ainda não contei é que alguns destes menin@s (3 turmas de 1º ciclo) insultam-se violentamente, batem-se, não se respeitam, não pedem desculpa, enfim um conjunto de comportamentos que é preciso ver para crer. Também só conhecessem o “respeito” por parte do adulto através do grito. Agora imaginem jogar futebol sem se baterem, aprenderem a acalmar-se, a comunicar, a pedir desculpa, ajudar o amigo e mais uns quantos princípios. Parece impossível, certo?
Comecei com o futebol. Depois comecei a levar cordas. Aqui descobri que há crianças que nunca tinham saltado à corda. Vi crianças felizes com uma corda, como numa manhã de natal. Depois levei legos, jengas, damas, jogo da forca, puzzles, carimbos e mais uns kg de coisas. Os princípios do futebol aplicam-se para os outros jogos. A partilha, cooperação, a solidariedade são muitos dos valores que andamos a conhecer.
A solução foi o Amor. A solução é sempre o Amor. Se está a ser perfeito? Nada disso. Está a ser um trabalho muito duro, mas está a ser o meu caminho. Giro conflitos em 90% do tempo, uso a minha voz para chegar à mente e coração destes meninos. Digo-lhes todos os dias que não vou desistir, gritar ou colocar alguém de castigo e que Adoro estar com eles. Em todas as aulas brincamos juntos, saltamos à corda, jogamos legos, montamos jengas e até jogamos juntos à bola. Tive que abrir as janelas do meu coração e deixar o amor sair, tirei a minha “máscara”, tirei o peso da professora e sou agora apenas a Vera.
Abri a porta dos abraços. Estamos todos mais próximos que em setembro. Estamos mais cúmplices e começamos a ser uma equipa. Tenho três novas equipas. Tenho cerca de 70 crianças que estão a descobrir uma nova forma de estar, aprender e ser. Se este não é o caminho, qual será?